terça-feira, 26 de setembro de 2017

Como Angela Merkel e o Papa Francisco estão refazendo o mundo

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O Papa e a chanceler querem uma globalização mais "humana". Mas isso poderia resultar em uma explosão.
Nas fotografias, os dois líderes parecem ter um relacionamento excepcionalmente próximo, Merkel ainda falou sobre seus valores compartilhados.
Nas fotografias, os dois líderes parecem ter um relacionamento excepcionalmente próximo, Merkel ainda falou sobre seus valores compartilhados. (CNS / Gregorio Borgia, pool via Reuters)
Por Padre Edmund Waldstein*

Quando os alemães se apresentarem às eleições neste domingo (24), é provável que reelejam Ângela Merkel como chanceler, cargo que ocupa desde o ano 2005. A vitória esperada de Merkel será ainda mais notável, dado que a recente reviravolta populista contra a ordem económica, social e política, da qual seus simpatizantes tendem a vê-la como sua principal inimiga. Muitos haviam pensado que não iria sobreviver à raiva pelo seu tratamento e políticas frente à crise dos refugiados.

Para seus inimigos, Merkel é a líder de um establishment, ou ordem política europeia tecnocrática e global que perdeu contato com as preocupações das pessoas comuns, uma ordem política que impõe medidas de austeridade em países mais fracos e está prejudicando a particularidade das culturas nacionais através do incentivo à migração em massa.

Entre os cristãos, as atitudes em relação a Merkel divergem. O primeiro-ministro protestante e conservador da Hungria, Viktor Orbán, é um dos seus adversários mais determinados.

Ele vê sua resistência ao programa político da Merkel como enraizado em suas convicções cristãs. Orbán representa uma Europa de estados-nação cristãos que preservam suas culturas tradicionais e sua independência econômica. Merkel representa uma Europa de multiculturalismo, integrada numa economia globalizada com uma divisão de trabalho transnacional.

Mas há cristãos que admiram Merkel como defensora da solidariedade e da dignidade humana contra populistas e políticos de temer. De longe, o mais importante é o Papa Francisco. Nas fotografias, os dois líderes parecem ter um relacionamento excepcionalmente próximo, Merkel ainda falou sobre seus valores compartilhados. Em junho, por exemplo, ela disse que o Papa "me encorajou a continuar e lutar por acordos internacionais, incluindo o acordo de Paris [clima]".

Este vínculo pode parecer surpreendente, já que o Santo Padre é um adversário feroz do que ele chama de "globalização do paradigma tecnocrático". Mas ele admira Merkel porque está convencido de que ela não é a globalização sinistra que seus críticos afirmam.

Ele pode ver em seu programa um compromisso com um objetivo que o Vaticano compartilhou há muito tempo: promover uma forma de globalização mais humana, conforme descrito na encíclica do Papa Paulo VI Populorum Progressio.

A plataforma política de Merkel é uma mistura complexa de diferentes elementos. Seu partido político, a União Democrata Cristã (CDU), foi fundada na Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Muitos dos fundadores tinham sido membros do Partido do Centro Católico antes da guerra. A CDU, no entanto, deveria unir os católicos e os protestantes, a fim de formar um consenso entre pessoas de boa vontade na defesa dos direitos humanos, assegurando que não haveria repetição dos horrores totalitários do Terceiro Reich.

Isso era típico dos partidos cristãos democratas nesse período. Enquanto antigos políticos católicos tinham esperado que os Estados reconhecessem novamente a Realeza de Cristo na Sociedade, os políticos da pós-guerra, sob a influência de pensadores como o filósofo católico Jacques Maritain, acreditavam que o caminho a seguir seria democracias pluralistas, com base em um consenso sobre a lei natural, parcialmente inspirada pelo entendimento cristão da pessoa, mas não sendo elas próprias explicitamente cristãs. A paz entre essas democracias seria promovida pela interdependência econômica e social e pela ruptura das barreiras.

Essas ideias tiveram uma influência importante no Concílio Vaticano II e foram sistematicamente promovidas pela diplomacia vaticana, especialmente depois que Paulo VI, um admirador de Maritain, tornou-se Papa.

Em uma entrevista em 2010, Merkel explicou sua visão das três principais raízes do programa de seu partido: o conservadorismo, o liberalismo e a riqueza da doutrina social cristã. Por "conservadorismo", Merkel quis dizer uma vontade de defender a liberdade e a paz por meios militares. Por "liberalismo", uma economia de mercado, e por "riqueza social cristã", um compromisso de defender a família e tratar cada ser humano como tendo uma dignidade inalienável como filho de Deus.

Há longas tensões entre esses diferentes elementos. Por exemplo, Merkel respondeu de forma pouco convincente quando o entrevistador perguntou como era compatível a atitude cada vez mais liberal da CDU em relação à homossexualidade frente ao compromisso cristão com a família.

As vertentes protestante e católica da doutrina social cristã divergem de certa forma. Antes da reunificação da Alemanha em 1990, a CDU era dominada pela tradição católica do Sudeste, com a desconfiança do poder centralizado e sua ênfase nas tradições locais e nas instituições intermediárias. A reunificação significou que a CDU se tornou mais localizada no Nordeste e mais protestante.

Quando Merkel tornou-se chefe do partido, houve murmurações entre a velha guarda contra o "Protestantismo Prussiano". O protestantismo prussiano valorizava a eficiência das burocracias centralizadas e tecnocráticas. A Prússia era o lar da ética baseada no dever de Immanuel Kant. Seu espírito era legal e abstrato. Merkel, filha de um pastor protestante que cresceu na Alemanha Oriental, certamente incorpora algo desta tradição.

As várias partes da composição política de Merkel se uniram no tratamento da crise dos refugiados. A acusação de que ela planeja uma enorme afluência de migrantes através da rota dos Bálcãs para acelerar a transformação multicultural da Alemanha é infundada. Mesmo um de seus críticos mais severos, o jornalista Robin Alexander, mostra em seu best-seller sobre Merkel e a crise dos refugiados, Die Getriebenen, que Merkel foi, por um lado, impulsionada pela força das circunstâncias (o significado do título) e, por outro, por um senso de dever.

Ela se encontrou com o grande medo que os migrantes despertaram na Alemanha com um apelo a convicções morais cristãs profundas. As novas chegadas não eram apenas "massas", disse ela. Foram indivíduos criados à semelhança de Deus. Quanto aos medos sobre o Islã destruindo a cultura cristã da Europa, Merkel disse que a cultura cristã já estava se deteriorando por dentro, como se poderia dizer ao perguntar aos alemães comuns as questões mais simples sobre a teologia cristã. "Se você está preocupado com a preservação da cultura cristã", disse ela, "vá à igreja com mais frequência e leia a Bíblia".

Excelente conselho. Mas o que Merkel negligenciou é que uma das razões pelas quais a prática cristã se deteriorou na Europa do pós-guerra é indiscutivelmente o ideal de democracia pluralista e religiosamente neutro que os democratas-cristãos, como ela, promoveram há muito.

Maritain pensou que uma democracia pluralista com um consenso sobre os direitos humanos levaria ao fortalecimento da religião. Mas este não foi o caso. As sociedades que não reconhecem a realeza social de Cristo tornaram-se cada vez mais seculares. E os pontos de vista da moral - especialmente a moral sexual - divergiram dos ensinamentos da Igreja. Os partidos políticos cristãos, como a CDU, responderam continuamente diluindo seu próprio compromisso com os princípios morais cristãos.

O Papa Francisco admira Merkel, em grande parte, porque parece estar comprometida com a visão pluralista do desenvolvimento global que a Santa Sé persegue desde o pontificado de Paulo VI. A esperança por trás desta política pluralista é que ela fomente paz, cooperação e prosperidade. A Santa Sé procura um mundo globalizado marcado pela solidariedade e pela responsabilidade, em que as diferenças não constituam um obstáculo à harmonia respeitosa.

Mas o risco sempre foi que o pluralismo levaria o cristianismo a diminuir cada vez mais até colocá-lo em uma parte marginal da sociedade, com a Igreja sob pressões cada vez maiores para minimizar seus ensinamentos. Infelizmente, há sinais de que isso já está acontecendo, particularmente quando o ensino moral católico entra em conflito com as atitudes morais seculares. No recente sínodo sobre a família, parecia haver um forte impulso para superar essa divergência ao suavizar a doutrina da Igreja. Mas certamente nenhum ganho em harmonia com a ordem atual das coisas pode justificar o obscurecimento do testemunho da Igreja sobre essas verdades.

Merkel sempre foi adepta de suavizar sua posição para se acomodar à mudança de opinião pública. Um momento decisivo em sua campanha atual veio quando ela relaxou a disciplina do partido para permitir que o parlamento alemão legalizasse o casamento de cassais do mesmo sexo. Os socialdemocratas rivais esperavam usar a oposição do partido de Merkel contra ela na campanha eleitoral. Mas permitindo que a lei passasse (mesmo que ela mesma tenha votado contra ela), Merkel puxou o tapete deles.

Seria interessante ouvir as reflexões do Papa Francisco sobre esse movimento. Ele o veria como um exemplo de covardia moral? Ou ele poderia vê-lo como um assunto secundário que poderia ser reservado em sua busca comum por um futuro pluralista?


Catholic Herald - Tradução: Ramón Lara

*Padre Edmund Waldstein O. Cist é um monge da Stift Heiligenkreuz na Áustria. Ele faz blogs em Sancrucensis e é editor de thejosias.com

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